O importante é...
Uma população inteira de lebres permanecia em intenso burburinho à beira do rio. Os assobios e guinchos ecoavam por todo o vale e o som chegava às restantes populações que eram atraídas pela curiosidade até ao local. Metade da população desconhecia o ocorrido: a lebre Alpina, filha de um conceituado casal humilde com muitos filhos e considerada pelos habitantes do vale como uma aberração da sua espécie, desaparecera sob olhares atónitos de forma inacreditável, simplesmente caminhando sobre as águas do rio como se do solo se tratasse, até o vulto se diluir pelas brumas do fim da tarde.
- Ploff, ploff, ploff – O som das lebres a mergulharem na água ouvia-se acompanhado de gritos de socorro, aos quais as outras acudiam com canas e lianas para puxar as companheiras para a margem.
Feridas na vaidade, não davam o braço a torcer e justificavam que a Alpina já se teria afogado, que aquele caminhar sobre as águas fora uma ilusão colectiva ou ainda que teria sido possível por uns instantes devido a um arranque a alta velocidade. Tudo servia para não admitirem que a Alpina era uma lebre prodígio com poderes para além do mundo animal. Permaneciam na margem à espera de um regresso amontoando-se em número cada vez maior, como peregrinos num santuário à medida que a notícia se espalhava por outras terras.

Quase três dias depois, ouve-se um grito ao longe. Alguém avistara um movimento nas águas e apontava para o rio. Todas as lebres se mantinham nas patas traseiras para verem melhor e de súbito, um feixe de luz emerge do cinzento das brumas. Aparece a Alpina caminhando sobre a água mais graciosa do que nunca, dirigindo-se à multidão de lebres na margem que a recebeu em estrondosos chios e aplausos, querendo tocar nela, fazer perguntas sobre tudo o que vira e ouvira, empurrando-se umas às outras de tal maneira que a Alpina era impedida de respirar. Alpina gritou à multidão que se acalmasse, que ela haveria de contar tudo a seu tempo. Fez-se silêncio na margem do rio, quebrado de vez em quando por um espirro, um assobio ou pelo disparo da máquina fotográfica da lebre Paixão, cujo sonho de mostrar os trabalhos ao mundo era motivo de chacota de outras lebres, que longe de a deitar abaixo, criavam nela uma força descomunal para seguir o caminho.
Assim que a ordem se instalou, Alpina começou a relatar a história.
- Na outra margem encontra-se um mundo fabuloso noutra dimensão, a preciosa jóia da existência onde as lebres, os lobos e os homens coexistem em harmonia e amizade, onde a riqueza é repartida de igual modo entre todos para que ninguém sofra privações.

- O essencial na vida deste lado da margem é estarmos em fascínio constante com o que nos rodeia, mesmo que sejamos perseguidas pelos predadores ou pelo homem que caça porque tudo faz parte do domínio da natureza. A sobrevivência encontra-se em nós e no caminho ou nos sonhos que seguirmos, será construído o destino.
Fixando ainda mais a lebre Paixão, continua:
- O importante é continuar a arranhar a máquina, insistindo nela tantas e tantas vezes quanto forem os desejos porque é assim que se fabricam os sonhos, da massa dos desejos e da força de vontade, nascem os verdadeiros castelos e mais, digo-lhes mais, qualquer uma de vós que tenha o coração puro será capaz de caminhar sobre as águas até a outra margem, basta que siga o passo que só tem uma direcção, para comigo atravessar este rio.